domingo, 9 de novembro de 2014

Desde o primeiro anoitecer que partilhamos juntos recebi com estranheza aquela mania de vick vaporub
Ele adotava a latinha de unguento com a tradição de um religioso. Fidelidade integrada. Submissão de um dependente contrito.
A vick era como um sol para suas noites. Seu projeto de salvação e sonhos, seu romance premiado com poesia e crônica.
Ele untava as pontas dos dedos com a pomada temática e besuntava o pescoço, o peito, os lóbulos e o tecido adiposo do nariz semi- adunco. Eu mapeava os detalhes do seu hábito noturno sem achar meios para erradicá-lo.
Por quase quinze anos dormi com um poeta que recendia o cheiro de um campo de hortelã na florada mais alta.
Tentava fazer negociações estratégicas, brincava de esquecer onde havia guardado a lata. Ele sempre tinha uma de reserva e eu ficava em desvantagem.
A vick era o GPS que o ajudava a encontrar o caminho do sono, os planos de amor, as cuias de mel, a providência das palavras.
Mas algo inédito aconteceu na véspera de um feriado; sem querer ele acariciou meu olho esquerdo com os dedos lambrecados da referida pomada vickosa.
Foi um dos momentos mais agoniosos da minha estada com ele. O ardor valia por mil cebolas descascadas escorrendo seu leite em conta gotinha sobre minha íris amarelada. Meu olho virou uma bolota carmesim. Um colorau na brasa.
Ele ficou desesperado. Providenciou água, assoprou com bem força, buscou toalha que molhava na baciinha na tentativa de aliviar o incomodo e nada!
Implorou desculpas, fez eterna jura de “foi-sem-querer” e eu sabia que não foi de maldade. Ele não pertencia à classe dos que torturam.
Daquele momento em diante meu cheiro ganhou exclusividade nas noites dele. Aposentou a vick vaporub. Abandonou a contravenção. Reservou a melhor gaveta do armário para acomodá-la.
Algumas noites ainda o flagrei abrindo a latinha e aspirando a tampa.
Sem agudez do remorso eu insistia para que usasse a bendita unção medicamentosa, ele dizia não.
Tinha deixado de precisar. Passou a usar só nos dias de resfriado de quando em quando bem de lonjão e na época que o nariz entupia ou garganta ficava na inflamação.
Com o advento do câncer no pulmão e o desconforto respiratório acelerado. Comprei uma latinha de vick e o presenteei com boa intenção. Ele sorriu carinhoso e agradecido lembrou de um poema que fez noutra ocasião. Relemos o poema juntos, depois demos mais risadas.
Minha memória eliminou a precisão das datas, mas cuidou do essencial. Imortalizei o assunto junto com os amigos que conhecem essa história e o amor que nunca há de findar-se.

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